mise en scene

- A Revolução matou o teu pai, meu pavãozinho e as cinzas dele foram dispersas por uma província que não era a dele. Sabes o que ele sofreu quando o vieram prender a esta casa como se fosse um malfeitor, quando atiraram os livros para o pátio e os queimaram diante dos seus olhos? Um guarda torcia-lhe os dedos quase até os quebrar para o impedir de se atirar ao fogo e quando ele passou por essa porta pela última vez para entrar no campo de reeducação! Ele, um dos mais eminentes professores de filosofia de Pequim.
     Calou-se, O desgosto quase que a sufocava.
-Sim. Eu sei - disse Wang.
A lengalenga recomeçava. Cem vezes a Srª Shou evocara em frente da filha os últimos acontecimentos da vida de um pai que ela não conhecera e que morreram em 1958, num campo de Hopei, eliminado como tantos outros "direitistas", após o efémero movimento liberal das "Cem flores"
- Não foi a ele que condenaram, mas à antiga sociedade reaccionária de Confúcio, inimiga das massas populares.
- Teu pai foi condenado porque tinha fé na sabedoria de Confúcio e não fazia mistério disso. Gostava de poesia, da nobre ópera da dinastia dos Tang, dos objectos de arte. Tu és filha dele, pareces-te com ele. Vê como ficaste orgulhosa por teres sido distinguida.
- Fui escolhida para representar os meus camaradas.
- Foste escolhida pelo teu talento e beleza.
- Minha pobre mamã, tu dizes sempre a mesma coisa! Quando quererás compreender que a Revolução aboliu essas noções burguesas de beleza e fealdade, de superioridade e inferioridade, que provocavam o despreza de uns pelos outros e a exploração das massas por um punhado de senhores feudais?
- É do teu pai que falas?
- Não pensava especialmente nele. O meu pai não era talvez irrecuperável. Deram-lhe uma oportunidade de se resgatar. Se tivesse vivido podia ter-se tornado um bom revolucionário, reconhecer os seus erros, corrigi-los.
 Wang, entusiasmada pelo sucesso, fazia-se forte, apoiada na sua camisa branca de gravata vermelha, enquanto a mãe, cheia de indignação, tentava desesperadamente não comprometer o momento de felicidade dessa noite, chamando a si os raros tesouros de paciência que puderam subsistir.
Wang, impiedosa, recitava a lição, dizendo com ares sensatos palavras terríveis:
- Tu pertenceste a uma família rica, tens maus antecedentes sociais, não renunciarás facilmente à arrogância, à vaidade ao gosto pela ociosidade. Mas não creias que eu me pareço contigo. O meu passado morreu em mim. Eu não sou filha de meu pai, sou filha de Mao, de coração vermelho
     A Srª Shou replicou no mesmo tom enfático, que era a única maneira que tinha de não explodir:
- E eu sou filha de uma senhora que tinha uma casa cheia de criados e de móveis de acaju. Tocava alaúde na galeria do primeiro andar, onde os vizinhos deixam hoje secar as folhas de chá. Teu pai ensinava filosofia quando o enviaram para uma comuna para lavar sentinas, e apanhar a porcaria dos aldeões. A Revolução destrui-o, fez de ti uma ingrata; e eu trabalho oito horas por dia numa oficina para te alimentar.
- Não preciso de ti, a República Popular é a minha família, o meu orgulho, e assegura-me tudo o que é necessário.

in, Corações Vermelhos
"enjoy" the Cultural Revolution
Does people want to be "educated" question "Popular Education"_(!"2

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